Em 2010 saí cedo à rua para comprar o álbum “do amor e dos dias” de Camané. Nesse mesmo dia, à noite, num dos telejornais generalistas a canção apresentada foi “Porta Aberta”. Não era nem single radiofónico nem a minha música preferida nessas primeiras audições. Após várias apresentações televisivas e diversos concertos lá havia a enfase no tal tema que eu não apreciava de forma especial. Passaram quase dois anos até que, num dia como outro qualquer, eu entendesse que a limpidez da voz, a história a contar e todo esse fado a transmitir estavam nesse “Porta Aberta” como em nenhum outro daquele álbum.
É hoje 2015 e saí cedo à rua para comprar o novo álbum de Camané, Infinito Presente. Nestas primeiras impressões, de seis passagens completas pelo disco, duas no carro, duas em casa e duas de auscultadores há de novo a euforia de estar com um objecto artesanal na mão. É um disco produzido por poetas, pintores, amantes. Tem o calor da novidade mas a precisão de uma cirurgia coronária.
Logo ali, no tema de abertura “Os Dois Horizontes”, há todos os arabescos a que as cordas de José Manuel Neto, Carlos Manuel Proença e Carlos Bica nos habituaram neste constante e fiável estado de graça em que se encontram os instrumentos e os homens que os fazem trinar. E claro, Camané de peito aberto como também é costumeiro, na sua voz de uma fragilidade delicada e somente aparente, a merecer todas as palavras e a pedir ouvir com auscultadores que envolvam. Este disco, tal como os anteriores, é para ser ouvido exclusivamente. Não é para ter a tocar de fundo num jantar ou enquanto se lê. Canções como “Conta e Tempo”, “Medalha da Senhora das Dores”, “Quatro Facas” ou “A Correr” merecem todo o respeito e atenção.
Se o “do amor e dos dias” era um disco do quotidiano do bom e do mau comportamento citadino este “Infinito Presente” é um disco acerca da passagem do tempo, serena e saboreada. É uma colecção de histórias sem ânsias, nem tristezas, nem resignações num espaço só seu de quietude. Há aquela existência leve do intangível poético. Há o estar em paz com isto tudo.
Há uma canção chamada “Quando o Fado Acontece” que explica, entre outras estrofes: “Que ao ouvi-lo mais parece / que já não vem da garganta / Quando é a alma que canta / É quando o fado acontece.” E é muito isso, quando os instrumentos, cordas de guitarra e vocais se juntam assim, como neste álbum, o fado acontece. E quando assim é só nos resta agradecer e ouvir em silêncio, como diz a tradição.